Compreensões...

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Ao fim da tarde

 



Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde

para respirar o ar fresco que vinha do oceano.

O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro

e uma nuvem erguia a cauda enorme como um piano.


Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,

tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,

divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro

e, a julgar pelas cartas, tomaste-te aflitivamente idiota.


Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,

em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora

não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda

distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.


Não me interpretes mal: a tua voz, o teu corpo, o teu nome

já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,

só que um homem, para esquecer uma vida, precisa pelo menos

de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.


Tu tiveste sorte: onde estarias para sempre – salvo talvez

numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?

Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez

dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.


JOSEPH BRODSKY 



Hoje ame intensamente e seja muito feliz.

Felicidades...


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